Antes de mais, temos que reflectir um pouco naquilo que hoje representa ver, e ver é talvez o sentido mais nobre, tido como o mais importante de entre os 5 sentidos.
Sabe-se que cerca de 85% da informação sensorial que recebemos em cada dia é-nos transmitida pela visão, compreendendo-se só por aqui o peso que o sentido visão tem.
A juntar a isto e confirmando tal facto, a própria sabedoria popular transmite o peso que vulgarmente se atribui à visão, através dos seus ditos e provérbios. "Em terra de cego quem tem um olho é rei", "olhos que vêem coração que sente", "ter uma visão global das coisas", "olhar para o futuro", são apenas alguns exemplos.
Assim, e por tudo isto, ver é sem dúvida tido como essencial e quem vê, ao imaginar o que é não ver ou a possibilidade de perdas visuais, sente tristeza e apreensão, lamentando quando vê alguém na rua com uma bengala de cego na mão, ou sabe que simplesmente algum familiar ou amigo seu terá que ser operado aos olhos, ainda que se trate de tirar uma simples catarata!
Imaginando agora quem está a perder visão ou já a perdeu e que outrora viu, não só sabe que está a viver uma realidade para a qual não está naturalmente preparado, como também sabe que toda a carga negativa que associava a uma situação de perda visual que antigamente pudesse ter visto em outrem a si, e sabe ainda que os outros, quando o vêem sentem isso por ele. Ele está desorientado, perdido, considerando que o futuro, mais do que incerto, será catastroficamente escuro e sem saída, numa palavra, o caminho para um triste fim!
Contudo, este indivíduo, tal como quem de fora o avalia e por ele sente compaixão, não sabe que há saídas e que não é o seu fim. É normal e, direi até saudável, que ele entristeça e deprima como reacção a tal acontecimento, pois que se não o fizesse, aí sim, estaríamos no domínio da ausência de recursos mentais para ele lidar com a situação.
Temos então alguém a cegar, deprimido, que toma consciência por si e pelos médicos que o seguem da sua situação e das repercussões da mesma. É então aqui que faz sentido a intervenção psicoterapêutica, primeiro para ajudar a pessoa a encarar e equacionar o seu problema, depois para inventariar as necessidades de ajuda de que necessita e rever o seu projecto de vida, e depois para o implantar na prática, quando já tiver feito o luto da situação.
Como atrás foi dito, o indivíduo deve ter um tempo para fazer o seu luto, o luto da sua grande perda, a visão, que fazia dele aquela pessoa empreendedora e dinâmica que pensa que nunca mais será, mas que terá que descobrir que afinal poderá voltar a ser!
Assim, o espaço de consulta, deve transmitir a esta pessoa a tranquilidade de que necessita para poder pensar os seus problemas e o psicólogo deve ser alguém que se apresenta como estando ali para a ajudar e que compreende e sente a situação que ela naturalmente vive.
É claro que o indivíduo não é sozinho nesta caminhada, pois tem um meio que o rodeia, nomeadamente a família. Esta também experimenta um luto e vive um forte stress provocado pela situação, tendo também que aprender a lidar com a situação e adaptar-se a ela, implicando isto ajustamentos na própria dinâmica familiar.
Compreender que a superprotecção da pessoa agora com deficiência não é a solução, perceber em que medida ela deve ser ajudada, perceber também em que medida lhe deve ser dado espaço para ela se repensar e reorganizar-se, são desafios que são colocados à família, fazendo sentido que ela também seja ajudada pelo psicólogo (ou o que segue o paciente ou um outro).
Assim, e resumindo, o psicólogo desempenha um papel de ajuda e é um facilitador da reconstrução de um projecto de vida por parte de alguém que de forma mais ou menos abrupta se viu na contingência de ter que mudar as linhas directoras da sua vida.
Sobre o tipo de problemáticas que se colocam nas diversas faixas etárias, temos que ter presente que a perda de visão em criança tem um impacto diferente da perda visual num adulto. Semelhantemente, as implicações de uma cegueira congénita são diferentes das referentes a uma cegueira adquirida. Assim, e neste caso, se na cegueira congénita se põem questões ligadas à socialização da criança e a quantidade, qualidade e variedade das experiências sociais que ela vivencia (quantas mais, melhor), na pessoa que adquire a deficiência visual/cegueira em jovem ou em adulto a questão posta relaciona-se mais com a forma mais normal ou mais patológica como a pessoa e família vence o luto. É claro que as vivências da criança cega congénita também remetem para a família que ela tem e para o meio em que vive, podendo estes dois últimos serem mais ou menos estimulantes para a criança, bem como mais protectores ou mais abandónicos , sendo aqui saudável que não superprotejam nem abandonem, pois que nos dois casos os resultados são evidentemente maus.
O testemunho sobre a necessidade de intervenção de um psicólogo no processo de ajuda a uma pessoa com deficiência visual.
Texto de:Dr. João Fonseca
Psicólogo - Instituto Oftalmológico Gama Pinto